Em
nenhum momento, ele olhou para o nosso filho." Priscilla Celeste
Munk é mãe de uma criança negra de sete anos. No catálogo racial
brasileiro, ela é uma mulher branca. Sua branquidade se anuncia pela
cor da pele, mas também pela classe social. Foi como uma mulher
branca, acompanhada de seu marido também branco, Ronald Munk, que
vivenciou o racismo contra seu filho adotivo em um dos templos do
consumo de luxo no país - uma concessionária de carros BMW no Rio
de Janeiro. A cena foi prosaica: a família foi à concessionária e
o filho se entreteve com uma televisão. O gerente os atendeu como um
casal desacompanhado. Quando a criança se aproximou, a cor de sua
pele resumiu a impertinência de sua presença em um lugar onde
somente brancos e ricos seriam bem-vindos. Sem se dirigir ao casal, o
gerente ordenou que a criança saísse da loja: "Você não pode
ficar aqui dentro. Aqui não é lugar para você. Saia da loja. Eles
pedem dinheiro e incomodam os clientes".
Imagino
que o monólogo do gerente com a criança sem nome nem rosto, mas
rejeitada pela cor, tenha sido adequadamente reproduzido pela mãe. A
combinação entre um "você" que olha, mas ignora a
criança, e um abstrato "eles", que não olha, mas registra
a desigualdade, é poderosa para resumir a racialização de classe
da sociedade brasileira. Em poucas palavras, o gerente oscilou entre
dois universos, ambos movidos pela mesma inquietação moral: como
proteger os ricos dos pobres, os brancos dos negros. O gerente não
cogitou estar diante de uma família multirracial, mas de clientes
brancos e de um menino negro pedinte que perturbaria a tranquilidade
do consumo.
Até
aqui, não haveria nada de novo para a realidade da desigualdade
social que organiza o espaço do consumo - engana-se quem pensa que
os shoppings centers são locais de livre trânsito: as regras sobre
como se vestir e se portar não permitem que todos igualmente ali
transitem. A impertinência do caso é, exatamente, estremecer essa
ordem silenciosa da desigualdade racial e de classe da sociedade
brasileira. Por isso, com a devida sensibilidade do capitalismo
global, a concessionária da BMW optou por descrever o caso como um
"mal-entendido".
"Preconceito
racial não é mal-entendido", disse a família em uma campanha
aberta sobre o caso, porém com cautela sobre a identidade do filho
que se vê resumido à cor. Não tenho dúvidas de que esse é um
caso de discriminação racial - a cor da pele importa para o
reconhecimento do outro como um semelhante. É isso que chamamos
racismo: descrição do outro como um dessemelhante e abjeto pela cor
de seu corpo. A criança de 7 anos, antes mesmo de entender o sentido
político do racismo na cena vivida, foi alvo de uma rejeição que
resume sua existência. Assim será sua vida. O consolo familiar é
que o garoto redescreveu para si que "crianças não eram
bem-vindas à loja" e não se personalizou na rejeição pelo
corpo. A ingenuidade infantil em breve será vencida pela observação
cotidiana de práticas racistas. Com a perda da ingenuidade, a
criança sem nome e com somente cor encontrará outro grupo para
traduzir sua experiência de sentir-se abjeta - não será mais
porque é uma criança em um ambiente de adultos, mas um adolescente,
um homem ou um velho negro em um mundo cuja ordem do consumo e da lei
é, ainda, branca.
Por
isso, desejo explorar o argumento do "mal-entendido" para
além de uma estratégia infeliz de marketing. De fato, há um
mal-entendido ético que costurou o roteiro desse desencontro racial.
Para ser reconhecido como um futuro adulto rico e potencial amigo da
concessionária para a compra de carros de luxo, o garoto de 7 anos
precisaria habitar um corpo inteligível para a casta dos ricos. Sua
cor o torna um sujeito inimaginável. Para ser reconhecido, é
preciso antes ser inteligível à ordem dominante.
Crianças
negras são ainda invisíveis ao universo do consumo, o que pode
parecer óbvio dada a sobreposição da desigualdade de classe à
desigualdade racial no País: negros são mais pobres que brancos, um
fato que alimenta intermináveis controvérsias sobre as causas da
desigualdade, se seriam elas de renda ou raciais. A verdade é que as
crianças negras não são invisíveis apenas na concessionária da
BMW, mas em escolas, hospitais ou espaços de lazer, isto é, como
futuros cidadãos à espera da proteção de uma sociedade que se
define como livre do racismo.
Como
em um experimento sociológico, o caso da família multirracial
mostrou que a renda não é capaz de silenciar a rejeição racial: a
criança se converteu em um ser abstrato, parte de uma massa de
pedintes que incomodam os clientes ricos. Ao contrário do que
imagina a loja da BMW, o mal-entendido não se resumiu ao diálogo
entre o gerente e a família, mas entre quem imaginamos que somos
como uma democracia racial e o que efetivamente fazemos com nossa
diversidade racial.
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